terça-feira, 14 de janeiro de 2025

A propósito de coisa nenhuma...

 


A propósito

Não entendo muitas publicações nas redes sociais, e até em alguma comunicação social local, daqui ou doutros lugares pequenos como o nosso, quando os autores dos textos se debruçam a fundo sobre questões nacionais que já foram abordadas noutros meios de âmbito nacional e que em nada adiantam nem atrasam com os seus sábios comentários e doutas opiniões.

            Quando, em tempos muito idos, o comum dos mortais tinha dificuldade de acesso às notícias sobre os acontecimentos do seu país ou do planeta onde habita, era absolutamente normal e útil – e muito útil – que, nos jornais locais, ou mesmo naquelas publicações de carácter regional, se focasse, com maior ou menor profundidade, os temas que preenchiam os ecrãs das televisões ou as páginas centrais dos grandes jornais nacionais e, até, europeus. Replicar, ainda que com algumas alterações, notícias sobre a guerra entre Israel e a Palestina, sobre a criminosa invasão da Ucrânia pela Rússia ou sobre os fogos que dizimaram a região de Los Angeles, e ainda sobre os óscares que se preparam para provocar mais uns risos e algumas lágrimas, não será de todo de grande valor ou importância. Tudo isso pode ser lido e escrito noutros órgãos à nossa disposição.

            Também o autor destas linhas faz, por vezes, reflexões baseadas nos acontecimentos ou nos protagonistas nacionais e mundiais, mas reconhecendo que teria mais valor o seu texto se descrevesse o que nos preocupa como montemorenses, de facto a vivermos numa aldeia global, que é este planeta, mas que teremos sempre mais a ganhar se mostrarmos aos nossos patrícios e aos nossos autarcas o que nos vai na mente.

            Veio este palavreado a propósito de muita coisa e de coisa nenhuma.

   

                                                           Autárquicas outra vez

            Ainda falta um tempo, mas temos de ir pensando no que iremos fazer em Setembro ou Outubro (ainda não se encontram agendadas) de 2025. O balanço deve ser feito com a máxima consciência e exactidão possíveis, a pensar em Montemor e no futuro. O mandato de quatro anos do presidente actual deve ou não ter o aval dos munícipes e merecer a confiança da maioria dos que vivem e trabalham no concelho?

            Os comunistas tiveram a confiança da maioria dos montemorenses para poderem, ao longo de 40 anos, planificar, orçamentar e executar tudo o que se referia a obras públicas, questões sociais, de cultura e desporto. A equipa bipartidária do socialista Olímpio Galvão acabou, temos de admiti-lo, por levar a bom porto muito do que estava decidido e planeado pela anterior equipa de Hortência Menino. Não houve tempo útil, e aceitamos essa condição, para trazer novidades de monta à forma de gerir o concelho. Houve, contudo, outro tipo de abertura e fomos confrontados com uma forma mais descontraída, menos “partidarizada”, de fazer política local. A questão importante é perceber qual a eficácia desta nova maneira de fazer política, menos formal, mais próxima dos eleitores, com aberturas ideológicas a outras forças políticas, situação raramente vista no período pré-Olímpio. É, sem dúvida, algum do material de que vai ser feita a nossa reflexão.

Em relação aos partidos mais conotados com a direita do espectro político, estes estão ainda meio diluídos e as suas intervenções surgem num contexto misto de esquerda e direita e, por isso, talvez seja difícil manifestarem, para já, um verdadeiro plano, concreto e exequível, para a gestão do concelho. Resta-nos aguardar.

 Posto isto, termino. Debates acesos terão lugar em tempo próprio. Para já, analise você, caro leitor. Vá observando, pensando e… quando for a altura, decida.

Não posso nem devo manipular o que lhe vai na alma.

  

Outra vez arroz…

             Há uma forte ameaça vinda dos Estados Unidos da América que, quando o caro leitor estiver a ler este texto, já terá tomado posse para grande terror dos países democratas e habituados a uma utilização da política para o bem comum. A ameaça tem rosto e nome. Chama-se Donald e tem a cara de alguém em que ninguém poderá confiar. Outros ditadores subiram ao poder de forma mais discreta.

Com o seu amigo Elon, o tipo mais rico do mundo, Don armou uma parelha de palhaços ricos que jamais entenderão as agruras e as angústias por que passam os palhaços pobres. O que tenciona, à partida, levar a efeito, pode transtornar de forma irreversível as relações entre vários países do mundo e, mais grave que isso, contaminar com as suas ideologias fascistas, discriminatórias, racistas, xenófobas e misóginas, muitos estados e partidos políticos, contra cidadãos e os direitos já garantidos por assinaturas, convénios, tratados e resoluções.

Ventura foi convidado para a tomada de posse de Trump. Trump há-de vir a Portugal à tomada de posse de Ventura, quando ele for, daqui a 11 anos, presidente da república. Escrevam o que eu digo.

 

Iliteracia literária

 

As obras literárias obrigatórias na disciplina de Português no ensinos básico e secundário, a serem lidas e analisadas por alunos entre os 13 e os 17 anos, há muito que não são devidamente absorvidas pelas diferentes gerações por dois motivos fundamentais que são cada vez mais notórios e difíceis de combater:  os alunos não têm conhecimentos suficientes de História de Portugal para entenderem obras como Os Lusíadas, Mensagem, Livro do Desassossego, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Frei Luís de Sousa, Sermão de Santo António aos Peixes, Os Maias, Amor de Perdição, entre mais algumas; os alunos não têm conhecimentos suficientes de vocabulário, nem de conceitos filosóficos e psicológicos, para entenderem na íntegra e em profundidade a mensagem veiculada por tais obras. Os conhecimentos sobre Camões, Pessoa, Saramago, Garrett, Vieira, Eça, Camilo ficam quase sempre muito aquém do que os professores de Português e Literatura gostariam, apaixonados que são, há tantos anos, por estas temáticas.  

Solução: alterar, com urgência, o programa da disciplina de Português (e de outras disciplinas, já agora). Como e com que alternativas? Não faço ideia. Estou quase a reformar-me. Digam-me vocês.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Janeiro de 2025

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

O Coralista, esse Soldado Desconhecido... e outras notas

 





Nota prévia: o texto podia, com ligeiras alterações, ter como título “O Filarmónico, esse Soldado Desconhecido”.

Aos meus amigos filarmónicos da Banda da Sociedade Carlista, da Banda Simão da Veiga, de Lavre, da Banda da Casa do Povo de Cabrela, da Banda Filarmónica Municipal de Redondo e da Banda Musical de Freixo de Numão (Vila Nova de Foz Côa), também a minha homenagem.

                                                                                        

O Coralista, esse soldado desconhecido

             Um Coralista é um soldado desconhecido, um ilustre anónimo, um herói sem coroa de louros, que dá tudo o que tem sem nada pedir em troca, a não ser o sucesso do Coro do qual faz parte integrante.

            Construir uma obra de raiz, seja mais clássica, mais popular ou mais contemporânea, exige tempo, esforço, entrega e substância, essa massa interior que se transforma em arte. Para isso, precisa de um Coralista generoso, empenhado, altruísta, paciente. Um ser humano abnegado que ofereça a voz, o tempo, a disponibilidade, a boa vontade. Esse Coralista, que todos vêem mas ninguém conhece, coloca o Coro à frente de outros interesses, tem a coragem de deixar temporariamente a família, a casa, outros amigos, várias vezes por semana, para, imaginem só o desplante, ir para os ensaios e cantar em coro. Essas apresentações fazem-se, não poucas vezes, em palcos espalhados um pouco pela geografia do nosso mundo, em igrejas, templos que albergam por momentos o ritual dos sons e das melodias que constituem esta religião especial e única chamada Música e que tem milhões de fiéis em todo o planeta.

O Coralista vive momentos únicos, respira em uníssono com mais vinte ou trinta como ele, e liberta emoções          que só a prática do canto em grupo pode proporcionar. Depois de cada concerto, após minutos gloriosos de muito trabalho e total entrega, surgem os aplausos do público, dirigidos não ao Coralista Desconhecido mas ao colectivo, ao grupo. Então, o Coralista, discretamente, em silêncio, mede a plateia com o olhar e com o coração, agradece em segredo o entusiasmo dos aplausos, sabendo que nunca ninguém vai saber um dia o seu nome. Porque outro nome se eleva nesse momento e sempre mais alto que todos os nomes: o do Coro a que pertence.

Quando, nos tempos que correm, o ser humano se expõe e exibe voluntariamente nas redes sociais, com fotos, vídeos e textos centrados na sua imagem, nos seus êxitos, nas suas escolhas gastronómicas e turísticas, no seu nome e no restante da sua vida privada, o Coralista, pelo contrário, anula-se voluntariamente em cada concerto, pensando apenas no grupo, no resultado final e na melhor forma de fazer do seu coro o melhor Coro do Mundo.

Ao pensar sempre nos outros, esquecendo-se de si próprio mas oferecendo o melhor de si, um Coralista será sempre um Soldado Desconhecido, um Anónimo Feliz, a fazer do seu Coro o melhor Coral da Rua Direita.

  

A Guerra ali à esquina


O Mundo vive e respira longos momentos de incerteza e angústia, dependente que está das intenções, dos interesses dos senhores da guerra e da sua inabalável fome de vingança pelos graves solavancos da História – o colapso da União Soviética, a implosão dos regimes comunistas, a ingerência dos Estados Unidos nos Governos e nos Estados do Médio Oriente e da América Latina, ocupações, invasões, questões territoriais, raciais e religiosas que levaram a dramáticas crises humanitárias ininterruptas.

Meia dúzia de cérebros doentes decidem quem vai morrer e quem vai viver. Um cidadão comum é, quase sempre, julgado e condenado pelos crimes cometidos. Os senhores da guerra já o deveriam ter sido. A ONU, a EU e outras entidades e organismos não têm, claramente, o poder e a força, a capacidade diplomática de levar a efeito a hercúlea tarefa de convencer as partes beligerantes a assinarem protocolos e acordos que tornem o Mundo mais seguro.

Não sabemos até quando poderemos dormir tranquilamente nas nossas camas, em nossas casas, nesta Vila Nova e em todas as vilas novas deste país.

 

Lá vamos nós outra vez… mas com classe!


Chegada esta altura, fatal como o destino, e lá vai o pessoal começar a gastar mais dinheiro em prendinhas de Natal. Detesto a expressão “prendinhas de Natal” ou “Vá lá, é apenas um apontamento simbólico. O que conta é a intenção.” Não gosto desta forma de ver as coisas. Cá em casa não passamos por essa vergonha, nem que os ambientes familiares e de amigos nos obriguem. Não. Nem pensar. Temos alguns pergaminhos a defender! Reparem os meus oito leitores se não gostariam de pertencer à minha família e aparecer, tal como nós, em tudo o que é revista!?

Os presentes de Natal (“prenda” é um regionalismo da periferia) já estão todos comprados: um carro novo, de alta cilindrada, para cada um dos três filhos, vinhos caros (200 €/garrafinha, no mínimo), para todos os amigos e familiares, vouchers no valor de 1.000 € para cada sobrinho(a), colecções completas de jogos para o(a)s sobrinho(a)s pequeninos(as), uma semana numa cidade europeia à escolha para o autor destas linhas e sua discreta esposa e, last but not least, a oferta de um osso de ouro (24 kilatezinhos) ao melhor Balú do planeta…

 …Vou parar a escrita. Estou a sentir um toque, ligeiro e fofo, no ombro direito, um abanãozinho, breve e tímido, no braço do mesmo lado, uma carícia, lenta e escorregadia, no farto cabelo grisalho: “Acorda, amor! Vai começar o telejornal!”

Era a Fofa, que se sentou ao meu lado depois de acrescentar mais um pauzinho na lareira, fazendo, de passagem, uma festa ao Balú adormecido. E acrescentou: “Comprei as prendinhas para os amigos e família. São só uns apontamentos simbólicos. O que conta é a intenção…”

Abri o olho esquerdo, depois o direito, e voltei a fechá-los com força, determinado a continuar a minha soneca até à chegada dos Reis Magos. O Balú, esse nem deu pelo terror que habitava a minha alma[1].


João Luís Nabo

In "O Montemorense" Dezembro de 2024

[1] “The terror is not of Germany, but of the soul” (Edgar Allan Poe, in Tales of the Grotesque and Arabesque)

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Dois lamentos sem importância

 

                                                               

    



O despertar do Monstro

 

            Ficou adormecido durante mais de quatro décadas o maior dos monstros que tinha transformado o nosso país numa quinta, gerida durante 48 anos por um capataz de fala mansa e com mão de ferro. Eram as trevas o seu meio ambiente preferido, onde espalhava o seu hálito putrefacto e bafiento da ameaça, nos cantos mais recônditos de um Portugal cinzento e amedrontado, habitado por gente que tinha sempre por sobre a cabeça a perspectiva da prisão, da tortura, da perseguição, da censura, do exílio, das reuniões clandestinas, das separações, do degredo.

O Monstro, vivo e violento durante quase meio século, não foi destruído naquela madrugada desse dia “inicial inteiro e limpo”. Foi, afinal, posto a dormir com um golpe na nuca, não de uma arma, mas de um cravo, que se julgou, poeticamente, ser a solução mais eficaz.  Com o susto provocado pelos militares e pelo povo nas ruas, o Monstro não morreu, como se pensava, regressando antes às profundezas do abismo onde tinha sido gerado. E aí ficou, em hibernação, adormecido, aguardando pacientemente a chegada das condições ideais para, novamente, começar a espalhar a semente do Mal.

            A intolerância religiosa, racista e xenófoba, as invasões militares, os ataques, os insultos em plena campanha eleitoral, nos Estados Unidos, em Portugal e noutros países ditos civilizados, as infantilidades na nossa Assembleia da República, as chantagens políticas, as perseguições, as mortes, a impassividade dos ditos homens bons, o demérito da esquerda, são a face visível desse Monstro, cujos tentáculos abraçam  violentamente o planeta.

Governos de extrema-direita começam a surgir na Europa que nem cogumelos, novos hitlers espreitam e sorriem aos descontentes, aos que se esqueceram do sofrimento dos pais e dos avós, perseguidos e muitos deles mortos pela força e pelos métodos invasivos dos maquinistas do Estado Novo, que não deixavam ninguém pôr o pé em ramo verde. Tornadas definitivas a democracia e a liberdade, estes seres ressabiados, defendidos e privilegiados pelo regime adormecido, esconderam-se nos novos partidos políticos, usados como máscaras durante anos, até hoje.  E por lá ficaram, gritando vivas à liberdade, contaminando discretamente ministérios e secretarias de estado, câmaras municipais e juntas de freguesia, deixando descendência, física e ideológica, que, anos mais tarde, começaria a manifestar-se de forma estranhamente descontraída e nunca até então vista.

            Espaço livre, foi o que foi.

Começou a haver, primeiro, timidamente, depois a céu aberto, espaço livre, onde o Monstro se instalou comodamente, agradecendo aos defensores da democracia e da liberdade a sua ausência de estratégias para manter o país a navegar, louvando a sua falta de empenho em condenar os corruptos e os ladrões de colarinho branco, o seu receio de devolver a autoridade às forças de segurança, a sua inépcia em legislar de forma séria e adequada sobre questões sensíveis como a imigração, a eutanásia, a mudança de sexo, a carreira docente, a saúde, a segurança, a idade da reforma…  Cada falha de governação permitiu aos partidos de extrema-direita (e de extrema-esquerda) darem um passo em frente em direcção aos degraus que os poderão conduzir ao poder.

Este Monstro vai começar, mais dia menos dia, a ser tratado como uma necessidade a bem da Nação. Esse Monstro já começou a babar-se, sedento de sangue e de morte. Esse Monstro tem um nome: chama-se Fascismo e pode, em breve, começar a fazer as primeiras vítimas: tu e eu. Depois, como escreveu Brecht, será tarde demais.

               

 

“O que faço aqui? Quem me abandonou?”[1]

 

Parecem os versos do “E depois do adeus”, aquela canção que o Paulo de Carvalho levou ao Festival da Canção de 1974 e que serviria como uma das senhas para os militares de Abril. Pois parece. Mas não é.

Estas perguntas, entre outras, são as que passam pelas cabecinhas das duas senhoras que foram nomeadas ministras, sem saberem muito bem nem como nem porquê, e que agora têm sempre um batalhão de jornalistas, malandrecos e mal-intencionados, a fazer perguntas maçadoras, com outras a serem-lhes sopradas ao ouvido, sobre o estado da nação no que compete aos respectivos ministérios: o da Administração Interna e o da Saúde. É curiosa a forma como reagem às perguntas que lhes fazem sobre as crises, as contradições, as confusões que reinam nos seus pequenos condados: não respondem ao que é perguntado, aparentam não fazer a mínima ideia do que se está a falar e estão sempre, ambas, a hiperventilar e ansiosas que as deixem em paz. Outros ministros, de outros Governos, com outro tipo de atitude e com provas positivas dadas em actos governamentais, por muito menos pediram a demissão. Mas estas senhoras não o fazem nem que as obriguem… Não sei porquê, não sei para quê, só sei que estão a prolongar uma agonia que nos faz sentir, todos os dias, vergonha alheia. E, pior do que isso, os problemas não se vão resolver tão depressa. É caso para dizer, nem as ministras saem, nem a gente almoça…  E a fomeca começa a apertar.

O primeiro-ministro, sempre assertivo e fofinho, ainda não percebeu que os tiros nos pés, disparados com rigor e mestria pelas duas brilhantes senhoras em questão, podem, mais dia menos dia, fazer ricochete no Chega e atingi-lo em cheio na tola.

            Depois, como escreveu Brecht, será tarde demais.

João Luís Brejo Nabo

In "O Montemorense", Novembro de 2024


[1] Texto escrito a 11 de Novembro

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Dois desabafos

 




Figurinhas fofas

 

Temos assistidos de boca aberta à representação teatral mais canastrona de que há memória, com dois actores que mais parecem figurinhas de presépio. Por que lhes chamo figurinhas de presépio, correndo o risco de continuar a causar alguns amuos a certos amigos meus? Porque Pedro Nuno e Luís Filipe, quais pastores, lavadeiras ou reis magos, fazem tudo o que fazem estas figuras de presépio que nós colocamos amorosamente sobre o musgo para gáudio dos mais pequenos: nada. Ou melhor: empatam, atrasam, procrastinam, à espera do dia de Reis para voltarem para dentro da caixa de sapatos.  

            O Orçamento vai ser debatido e votado na generalidade nos próximos dias 30 e 31 deste mês. Se for aprovado, com algumas das suas alíneas mais ou menos onerosas para os portugueses, será menos uma crise imediata que o nosso país tem de enfrentar.  Se não passar pelo crivo do Parlamento, vêm aí as temidas eleições antecipadas. E, claro, a gestão do país por duodécimos e outras tretas, todas elas prejudiciais para quem se levanta diariamente para ir trabalhar. Independentemente do resultado, não teriam sido necessárias tantas propostas, contra-propostas ou contra-contra-propostas.

            Admirado estou eu que Montenegro e os seus ministros e secretários de estado se tenham aguentado até aqui. O Governo é, desde o início, uma manta de retalhos, um Ser com várias peças que, tal como a Criatura de Victor Frankenstein[1], se vai revelando com uma capacidade absoluta de aniquilar o seu Criador. Se tal não aconteceu no célebre romance de Mary Shelley, poderá vir a acontecer nesta história real e lusa, com ou sem o Orçamento aprovado, e que, ao contrário das tragédias narradas no livro, mais parece o resultado de uma comédia de enganos. Agora, há que assumir as culpas. E é a maioria do povo que as deve assumir: o engano foi seu… quando o elegeu.

   

            Uma nota final para sublinhar a triste intervenção, no passado dia 8, de Luís Filipe sobre o Plano para os Media: quando um primeiro-ministro e um seu repetidor, chamado Pedro Duarte, ministro dos Assuntos Parlamentares, têm o desplante e a tenebrosa ousadia de dizer que “não gostam de jornalistas ofegantes” e que “não gostam de perceber que há jornalistas que se limitam a expressar o que lhes sopram ao ouvido”, algo começa a estar muito, mas muito podre, neste país a caminho de um abismo sem retorno. Ao longe, ouvi o falsete daquela voz vinda das trevas a proclamar “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”[2]. Tratar os jornalistas como se fossem miúdos mal comportados era a última coisa que se esperava do primeiro-ministro do meu país. Há que estar alerta e preparados para dizer a um Montenegro com “olhos doces”, não sei por onde vou, mas “sei que não vou por aí”[3].

 

 

Transparências

 

Com a idade começamos a ficar mais transparentes. Já não temos paciência para ocultarmos os nossos sentimentos, os nossos gostos e desgostos. Os que não nos conhecem mostram desagrado se algum comentário nosso lhes faz dói-dói, os nossos amigos começam a esperar de nós, exactamente esses comentários, essas opiniões, que eles próprios, tantas vezes, subscrevem. Deixamos, finalmente, de ser uma espécie de instituição pública em que há uma lei que nos obriga a sermos iguais para toda a gente. Passamos a dar mais do nosso tempo a quem nos oferece o tempo que tem, e começamos a apreciar os pequenos momentos com algumas pessoas que, pela sua intensidade, são os melhores, os mais consoladores, os que preenchem os longos silêncios de quem, por circunstâncias da vida e da morte, se afastou fisicamente de nós. 

 

A acrescentar a estes pequenos caprichos, começamos com a tendência nunca antes vista de ficar mais tempo em casa, gozando cada momento e cada metro quadrado. E se nos apetecer uma escapadinha ao fim da tarde, então vamos até às Fontainhas e atiramos uma moeda para a taça como se, enlaçados com a nossa cara-metade, estivéssemos a sonhar junto à Fontana di Trevi. E, depois, quer tenhamos viajado até Itália, quer tenhamos apenas subido três ou quatro ruas da nossa cidade, regressamos a  casa, à nossa ilha, ao nosso reduto, ao nosso forte, à nossa sauna, nossa ou arrendada, maior ou mais pequena, mais luxuosa ou mais minimalista, mais rica ou menos rica. Porque também é aqui que regressamos, após um dia de desânimo, após uma tarefa não concluída ou um projecto falhado. É aqui, no nosso lar, na nossa casa, que sentimos a segurança e o conforto que não experimentamos em qualquer outro lugar. E o nosso lar é tudo: é a nossa mulher, o nosso marido, os nossos pais, a nossa namorada ou namorado, os nossos  filhos e netos, o nosso cão, gato ou periquito... ou nós próprios, apenas.   

 

E, quando tudo se proporciona, se na nossa casa podemos juntar alguns amigos, à volta de um livro ou à volta de coisa nenhuma, em almoços épicos, porque profundos e intermináveis, então, aí, chegamos ao verdadeiro Paraíso.

Isto não é um recado. É um desejo. Só não percebe quem não quiser.

 

 

João Luís Nabo


In "O Montemorense", Outubro 2024



[1] Victor Frankenstein é a personagem-título e protagonista do romance de 1818, de Mary Shelley, Frankenstein ou O Prometeu Moderno

[2] Um dos mais queridos lemas do ditador António de Oliveira Salazar (1889-1970).

[3] Alusão ao poema Cântico Negro, de José Régio.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Dois apontamentos na rentrée

 




As minhas férias

 

            As minhas férias foram absolutamente normais. Como as férias da maioria dos portugueses. Com um ou outro constrangimento, mas nada de maior importância.

A minha cidade fica sempre diferente nesta época do ano. Isto porque deixamos de encontrar com tanta frequência as mesmas pessoas, usamos roupas claras e leves, interrompendo por umas semanas o nosso visual de alentejanos que pouco se importam com a moda e, muito importante também, acabamos sempre por dar de caras com gentes de outras paragens (cada vez em maior quantidade, é verdade) que passam por aqui em turismo ou que assentaram residência temporária ou definitiva na nossa cidade ou no nosso concelho, por questões de trabalho.

        Pois foram normais as minhas feriazinhas. Com passeios pela cidade, descarada ausência no ginásio, encontros com amigos, um ou outro petisco na Sede da Columbófila e, também lá, o meu Martini das onze e meia, dia sim, dia não, para além de umas sestas, umas leituras, umas escritas, enfim… o normal. Contudo, “para respirares outros ares que não só os da Torre do Relógio”, como diz o meu Grilo Falante, até estive uns dias na praia na companhia de gente boa e paciente (a minha mulher e a minha filha). Na praia. Leram bem. Eu faço tudo por elas. Ah, pois é! E como foram esses dias de veraneio, sem planos especiais e com muitas horas na mesma posição do Menino Jesus (nas palhinhas deitado, nas palhinhas estendido)?

            Se não tivessem sido os gritinhos irritantes das velhinhas, quando uma onda lhes subia pela pernoca; se não existissem os homens das bolas de Berlim, constantemente com aquele grito “Boliiiiiiiinhaaaaas!!!!”, mesmo junto ao nosso ouvido bom, alguns deles com uma campainha que retinia ao som dos seus passos pelo areal; se os Salvadores e os Santiagos, os Martins e os Afonsos tivessem ficado em casa com as mamãs, que ainda gritam mais do que eles; se os telemóveis tivessem sido proibidos à entrada da praia; se os cães e os donos dos cães tivessem ficado numa praia só para eles, a dez quilómetros da minha; se os malucos da salsa, da rumba e sei lá mais do quê tivessem ido dançar para a Floresta Amazónica e tivessem levado com eles aquela coluna de som que, de certeza, se ouvia em Pequim; se os guarda-sóis dos meus vizinhos, mal enterrados na areia (os guarda-sóis, não os vizinhos), não me tivessem acertado sete ou oito vezes em plena sesta, depois de um almocinho de dieta; se a água do mar pudesse ser aquecida rodando um botão, assim como num esquentador; se os jovens adolescentes não se armassem em parvos para as namoradas, fazendo surf e bobyboard e sei lá que mais, ao som dos gritos das suas hormonas saltitantes; se os Salvadores e os Santiagos, os Martins e os Afonsos, com pouco mais de três extraordinários e sonoros aninhos, dormissem o dia todo, a toque de ritalina e outras cenas que os pais lhes dão antes de irem para a escola, e não fizessem corridas nem jogos de raquetes a toda a hora, saltando por cima de mim e das minhas companheiras de férias como se estivessem a correr os 100 metros barreiras… Se eu tivesse ficado na minha sala, fresca e silenciosa e com uma televisão cheia de filmes e séries para desfrutar…

…Então, as minhas férias teriam sido o Paraíso, meus filhos[1]

 

Os novos montemorenses

 

Há um novo grupo, já com alguma dimensão (embora eu não possua dados concretos sobre isso), que veio para Montemor, como poderia ter desaguado noutra terra deste Alentejo. Os migrantes com quem nos cruzamos diariamente vieram à procura de paz e de trabalho. Não sei se a Autarquia já o fez e, se assim é, deixo aqui o meu aplauso, mas seria urgente a criação de um Gabinete de Apoio ao Migrante, constituído por uma equipa multidisciplinar que preste auxílio a quem chega a Montemor praticamente com a roupa que tem no corpo: ajuda com a língua, a documentação, a matrícula dos filhos nas escolas, a procura de casa e de trabalho digno. Somos, cada vez mais, uma cidade cosmopolita, com cidadãos de variados países do mundo que precisam de se sentir incluídos e felizes. Já basta a distância que os separa da família e dos amigos, das vivências culturais dos seus países de origem. Já basta o terem sido perseguidos e maltratados pelos seus próprios governos. Já basta terem fugido à guerra e à fome. Já basta tudo isso.

Nos anos sessenta e setenta, para escaparem à miséria, ao salazarismo que parecia eterno e à guerra no Ultramar, milhares de portugueses rumaram, sabe Deus em que condições, em direcção à França, à Alemanha, à Suíça, aos Estados Unidos… Refizeram as suas vidas, com muito trabalho e, quantas vezes, a viverem em condições desumanas, e deram um futuro aos filhos e netos. Ainda hoje continuamos a emigrar, noutras condições, é certo, mas sentimos sempre aquele desejo de vermos os portugueses como nós a serem respeitados nas suas capacidades e na sua dignidade como qualquer outro cidadão do mundo.

Montemor, tal como o nosso Alentejo, sabe receber as gentes que vêm de fora. E se somos calorosos, genuínos e magnânimos em momentos de festa, que o sejamos também nestes momentos de aflição. Nunca saberemos se, um dia, não somos nós a procurar uma vida melhor a milhares de quilómetros da nossa terra.

 



[1] Homenagem ao poeta britânico Rudyard Kipling (1865-1936) e ao seu poema “If”.


João Luís Nabo

In "O Montemorense" , Setembro de 2024

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Três vivas!

 


Viva Portugal dos Pequenitos! Viva!

 

Ora, como dizia um célebre Professor na RTP, aos Domingos à tarde, nos anos 60, se bem me  lembro… há muito, muito tempo que Portugal não tinha tanta lama e tanta gente estranha a marinhar neste lago de gansos moribundos que nada acrescentam a um país a necessitar urgentemente de ver uma luz ao fundo do túnel. Se Vitorino Nemésio vivesse hoje, nenhum dos políticos ou dos pseudo-políticos que por aí andam a dar-nos música se safaria de uma observação sagaz, pertinente, certeira, corrosiva e inteligente. Como nenhum de nós, nem eu nem os meus 8 leitores, é o velho e saudoso Professor açoriano, contentamo-nos em, seguindo o seu provável raciocínio em relação a estas matérias, declarar morta e enterrada a confiança que devíamos depositar no sistema de justiça, a honestidade e transparência da maioria dos políticos, a esperança de sermos felizes neste país de ratazanas que querem é palco, mentir uns aos outros e aos portugueses que os elegeram e apresentar para governar este quintal ministros que não passam de figurinhas de presépio, e de líderes que, perante qualquer contrariedade, ameaçam de forma, quer velada, quer directa, com a sua demissão.

E Marcelo? Ah!!!! E Marcelo que tem sempre tanto para dizer, que fala quando lhe fazem perguntas e, quando não lhas fazem, fá-las ele para, a seguir, responder com um sorriso perdido mas feliz.

Não. Portugal não merece os filhos que tem. Nem a Pátria é ditosa. Nem ditosos são os filhos que ela pariu.

 

 

Viva o Euro (ou lá o que é)!

 

Tanta fé, tanta fé, tanta vela na Senhora da Visitação, tantas promessas à Senhora da Carvalha, tantas orações a Zeus Cristiano e, afinal, nada deu certo. Mas vivam os que fizeram desta participação de Portugal uma grande festa antes do desastre final e da morte da Esperança, a tal tia que foi a última a morrer… Mas já se sabia qual a grande consequência de tudo isto: atacaram o Ronaldo por causa da idade e má-na-sê-quê, anunciando as grandes e doutoradas vozes do meio que ele e o Pepe já deram o que tinham a dar.

Não sei se é assim. O futebol não é a minha praia. Mas se Portugal se aguentou até aos quartos de final, foi porque teve valor e teve jogadores à altura. Achei muito curioso destruírem o Diogo Costa no jogo contra a França, depois de o terem transformado em semi-deus e herói lusitano, digno da epopeia camoniana, no desafio contra a Eslovénia. Na verdade, a criatura humana é de atitudes absolutamente interesseiras, contraditórias e… estúpidas.  

Para terminar este pedaço de “análise futebolística” (se não pusesse a expressão entre aspas, já estava a receber telefonemas de amigos menos tolerantes e que acham que metem muita graça com as suas críticas à minha falta de conhecimentos nesta área), gostava de perguntar por que se aplaudem equipas que não conseguiram cumprir o seu objectivo, que era, naturalmente, saírem vencedoras na Final? São aplausos de consolação. Aceito.

O que não aceito é milhões e milhões de portugueses mostrarem a sua solidariedade e o seu amor incondicional a jogadores que nunca os conheceram ou conhecerão e que assobiam para o lado quando as crises do país se esbatem sobre as suas cabeças, sem que os Governos sucessivos do Pê Esse e do Pê Esse Dê lhes resolvam os graves problemas de salários, habitação, emprego, educação, saúde e outras cenas que todos conhecem e que só agora, passada a euforia do Euro, lhes recomeçam a bater forte. Porque não podemos esquecer que há outro Euro muito mais importante que o do futebol: o Euro que nos põe o pão na mesa e a que nem todos os portugueses têm devido acesso.

Faleceu a Dra. Joana Marques Vidal, a primeira procuradora-geral a mandar prender um ex-primeiro-ministro. Que a Dra. Lucília Gago se mantenha firme para que possa mandar prender quem deve. O problema é que este pessoal de colarinho branco é todo desviado para Évora, e a prisão da nossa capital de distrito, tal como o Euro com que nos governamos, não estica.

 


Viva o Curvo Semedo! Viva!

 

Fui ao espectáculo da Escola de Ballet do Município. Foi uma bela festa, com as pequeninas a darem o seu melhor e com as crescidas a criarem grandes momentos estéticos de dança e expressão corporal. Admirável, direi mesmo. Indissociável desta bela obra com 45 anos de vida está a Professora Amélia Mendonza, a quem ofereço, de pé, o meu prolongado aplauso.

Mas nem só de palco vivem os grandes teatros, como é o Cineteatro Curvo Semedo. A ausência de obras atempadas faz com que, por exemplo, em noites de concerto, as poltronas da plateia deixem os espectadores escorregar até ao colo dos primeiros violinos, permite que as casas de banhos dos Senhores e das Senhoras estejam completamente degradadas e sem quaisquer condições de higiene para serem utilizadas devidamente, admite nos corredores do teatro sofás que já viram dias (muito) melhores e os quais ninguém quer usar para descanso.

Sei que está prevista uma obra de remodelação para todo o edifício. Sei também que há, desde o Governo de Durão Barroso (2002), um projecto para as alterações ansiadas. Sei que continuou depois a haver mais umas promessas e tal, mas também sei que nada aconteceu. Se a situação está prestes a ser resolvida, isso devolve-me uma certa esperança de começar a ver uma luz ao fundo do túnel.

Só espero que não seja o comboio.


João Luís Nabo


In "O Montemorense", Julho de 2024

terça-feira, 11 de junho de 2024

Três cenários

 


 

Cenário I – o Centro Histórico

 

            Se algum forasteiro se atreve a desenhar a nossa cidade com traços críticos, de mau gosto, apenas porque sim, ou para cumprir a sua missão como “detestador” de serviço, nós, os de cá, levantamos logo a mão (a direita ou a esquerda, tanto faz) e dizemos sem hesitação: “Alto e para o baile!” E porquê? Porque para dizer mal, criticar e apontar defeitos à nossa cidade estamos cá nós, os que gostamos dela, os que cá vivemos e que temos as suas ruas e os seus largos como cenários naturais da nossa vida diária.

Sabemos que o nosso Centro Histórico continua, pelo menos aparentemente, sem uma solução à vista. Já por aqui passaram, noutra altura, esses desabafos e alertas. Sabe-se que nem tudo depende da autarquia e que os proprietários das casas quase em ruínas precisariam de apoios substanciais para poderem restaurar/reconstruir os imóveis que são, muitos deles, a imagem do Centro Histórico, mas que estão na iminência de cair. Não se referem aqui as evidências, porque elas são, de facto, demasiado visíveis, e estas linhas são apenas o resumo das muitas preocupações que munícipes e órgãos autárquicos vêm manifestando ao longo de vários anos. No entanto, ainda nada se fez. No entanto, esses imóveis continuam lentamente a mover-se em direcção ao solo.

Um dia, o Largo General Humberto Delgado, o Largo da Matriz e outros espaços emblemáticos da cidade podem transformar-se em feridas angustiantes e dolorosamente difíceis para o olhar de quem passa.  

 

            

Cenário II – O Rio

 

            Também o Rio parece condenado a desaparecer. O Rio onde aprendemos a nadar, onde passámos verões inteiros à pesca, onde nós éramos parte daquelas águas e personagens desenhadas naquele quadro com as torres do castelo lá em cima, no monte mais alto. As margens foram, há muito, conquistadas pelas silvas e por outras plantas selvagens, os peixes perderam há anos o seu habitat natural, as águas, um fio de luz naquele restolho sem fim, já quase não se avistam ao longo daquele triste barranco… Lembro-me de o Rio ter sido, em tempos, um dos elementos que viria a ser estudado pelos socialistas, quando estes começassem a gerir a autarquia. Na verdade, pouco ou nada se tem ouvido falar sobre o assunto.

Enquanto esperamos que outros dias possam trazer uma enchente de boa vontade (e de dinheiro) para devolver ao Rio a sua dignidade, aqui fica, sem qualquer presunção, um excerto do conto “O Milagre”[1], com dois retratos profundamente diferentes do Rio Almansor, mas porque era assim que, em tempos idos, ele se manifestava. No Verão era um, no Inverno era outro, como qualquer ser vivo em constante mutação. Agora… é sempre igual. É um cadáver à espera do próprio enterro:

 

FAZIA um calor de morte. Agosto ia a meio e Vila Nova transpirava por todos os poros. Nas ruas e nos largos quase não se via vivalma. Apenas a luz do Sol a vibrar nas pedras da calçada e a fazer escorrer suor pelos rostos, muito poucos, dos mais ousados. O rio que passava lá em baixo, no sopé da colina coroada com as torres do Castelo, era um fio de dor que deixava a descoberto troncos velhos, secos, de braços retorcidos apontados ao céu, que destapava rochas, lapas, labirintos escavados no fundo do leito por peixes de toda a ordem, por cágados e cobras de água, bicharada que ia convivendo, que se ia apertando, conforme o tamanho e o feitio, nos pequenos pegos, pobres poças de água quase pútrida, onde tentariam sobreviver até à chegada das próximas chuvas “(…)”.

“(…)” No dia seguinte, choveu, glória à Virgem e a Deus, aleluia! (…) Por cima do Castelo, nuvens negras vomitavam raios e trovões, lançando uma cascata, pesada e interminável, que era um entorneiro por aquela encosta e por todas as encostas ali à volta, desaguando no rio que, no fundo do vale, já tapava os arcos da ponte romana. As águas, imparáveis e impiedosas, saltavam as margens e arrastavam sem compaixão porcos e ovelhas, galinhas e patos, que chegavam já inchados ao Pego do Moinho do Virtuoso “(…)”.

 Cenário III - Férias (o velho cliché de sempre?)

Vamos lá então descansar os ossos para um sítio longe daqui, para desanuviar, dizem uns, para mudar de ares, para lavar a vista… Praia, montanha, lá fora, cá dentro, com a família, com amigos ou sozinho. Cada um fará como melhor lhe aprouver ou conforme o deixarem. Muitos saem porque estão fartos das mesmas ruas, das mesmas pessoas nos mesmos locais. Mas não querem ficar em hotéis de luxo, ou em apartamentos confortáveis com vista para o mar ou para a montanha. Nada disso. Aventuram-se para o Algarve, à boleia, com uma mochila às costas, para a Comporta, de bicicleta, ou mesmo para um parque de campismo meio perdido, junto a uma pequena aldeia do Norte. Outros atravessam desertos, de moto ou em camelos, descem a costa alentejana de caravana ou num Opel Corsa de 1992 (ah, a Velha Senhora, sempre pronta para as curvas!) ou fazem trails de loucos em serras inóspitas, onde um passo em falso pode ditar uma verdade assustadora. O objectivo não é o repouso, sob um sol convidativo, à beira da piscina do Altis ou no relvado de um jardim exótico. Não são as sunset parties nos bares da praia ou os jantares à beira-mar, onde tudo é preto e prata, branco e alaranjado. O propósito é a superação, é o aliviar do espírito, o querer, o ser, o estar, o afirmar-se, mais uma vez e sempre, como seres humanos que levam ao limite o seu talento de sobreviventes, e ser capaz, no fim, de lavar o sangue, o suor e todas as lágrimas. Como faz o Pedro Ferreira, nesta sua permanente atracção pelo abismo.

Um dia, que se deseja tarde, serão esses os primeiros a salvar-se.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Junho de 2024

 



[1] João Luís Nabo, in “Segredos de Vila Nova” (Edições Colibri, Lisboa, 2023)

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Três (ou mais) cenas tristes

 


 

            Escrever sobre a actualidade que nos assalta diariamente nas televisões e nas maravilhosamente malditas redes sociais é mesmo um sacrifício, porque não conseguimos retirar das informações uma gota de bom senso que possamos aqui transformar num rio de ideias, propostas ou conselhos para quem precise deles.

Portugal está a colapsar após 50 anos de Governos socialistas e sociais-democratas/centristas. Depois das sequentes e angustiantes quedas dos governos provisórios nos primeiros meses pós-revolução (até parecia que tínhamos regressado à Primeira República), sucederam-se verdadeiras equipas de extermínio que nos conduziram ao lugar degradante e, aparentemente, sem futuro onde nos encontramos há já tanto tempo. Há tanto tempo, que até já nos habituámos… à boa e tristinha maneira portuguesa do “Cá vai a gente indo…”

Houve momentos de clarividência, pois que os houve: o fim da guerra em África, a libertação dos presos políticos, o fim da censura, a criação do Sistema Nacional de Saúde, a conquista do direito à greve, o multipartidarismo, as eleições livres, o direito à educação, o direito à justiça, de forma isenta e igual para todos, o lento caminho em direcção à igualdade de género, os meios de comunicação rodoviária a unir quase todo o país…

Mas ficámos por aqui. Os lobbies, os amiguismos, os interesses e a corrupção tomaram conta do quintal, e o país, por muitos milhões de euros que viessem da Comunidade Europeia, nunca conseguiu equilibrar as contas, sobrando sempre para os que, eternamente agarrados à rocha, levam com todas as tempestades levantadas pela ladroagem que por aí tem andado e tarda em acabar, porque a Justiça branda nada consegue, ou quer, fazer.

 

 Cena Triste I

Nas  escolas, e apesar de alguns professores ainda acreditarem e praticarem os valores da velha escola (não a velha, onde a violência abundava, mas a velha, onde o professor transmitia conhecimentos, sem receio de que esses conhecimentos fossem postos em causa ou desprezados), estão ansiosos pela chegada do dia da aposentação, para poderem afastar-se de um sistema cada vez mais burocrático e no qual têm mais valor as actividades extra-curriculares do que o que se diz, pensa e ensina em frente ao quadro de uma sala de aula. Se queres ser comunitariamente incluído e aplaudido… dá poucas aulas e passeia muito.

 

Cena Triste II

 

Nos hospitais públicos, os doentes, mesmo os que necessitam de cuidados de maior urgência, esperam eternamente até serem vistos pelos médicos e enfermeiros, aguardam longas horas, em sofrimento, até que haja um bloco operatório livre para que o seu caso seja tratado, aguardam meses por consultas da especialidade até ao dia em que morrem e já não vão precisar delas. São horas, dias desesperantes de espera: velhos, novos, crianças, todos são tratados da mesma maneira: mal e de forma negligente. Mas não culpemos os médicos. Culpemos o sistema, o Estado que gere o sistema e que nada faz para inverter a desordem em que isto ficou. Há profissionais de saúde, tal como há professores, que ainda acreditam em tempos melhores. Que se vão mudando os Governos até a coisa afinar…

 

Cena Triste III

 

Na Justiça temos o que vemos e lemos todos os dias: procuradores sob o foco da opinião pública por fraca prestação no exercício das suas funções, juízes a serem julgados por suspeitas de corrupção e, cereja no topo do bolo, a decisão da procuradora Lucília Gago, que fez incluir um parágrafo no comunicado a propósito da Operação Influencer que acabaria por derrubar um Governo inteirinho. Este parágrafo foi, digamos assim, a cadeira de António… Costa. Como consequência, recebemos de presente um outro executivo, com ministros e secretários de estado que, qual figurinhas de presépio, ali estão apenas para decorar o musgo debaixo da árvore de Natal. De política nada percebem. Nem de contas. Nem de gestão. Nem de nada.

 

 

Última Cena Triste

 

“Temos tudo para sermos bons”, desabafava um amigo, recentemente, numa das esplanadas da cidade, após um copioso lanche de produtos de dieta alentejanos. “E temos”, respondi, do alto da minha provecta idade, beberricando um branco fresco, frutado e da região.

Mas o sistema não nos deixa ser “bons”. Se passarmos as várias linhas vermelhas que os políticos nos estendem à frente, linhas que definem bem a sua vontade de um poder absoluto, acabamos por ter problemas, ou com a justiça ou com a comunidade profissional em que nos inserimos. Neste país, os “bons” são obrigados a sair para ver reconhecido o seu verdadeiro valor. Temos cientistas, médicos, enfermeiros, professores, pensadores, escritores, actores, jornalistas topo de gama. Muitos não estão cá, porque este país madrasto os chutou daqui para fora. Outros profissionais nas mais diversas áreas partiram também, deixando vagas para centenas de imigrantes que vêm de várias partes do Mundo à procura da felicidade (Como estão enganados!...) 

E, depois, last but not least, temos ainda o fenómeno Marcelo, cavalheiro que nunca entendeu a diferença entre as funções de um comentador político e as de um Presidente da República. Marcelo perdeu por completo o sentido de Estado e de responsabilidade perante um Governo e um país (triste, mas um país), quando comenta de forma aleatória e um bocado alucinada tudo o que se passa à sua volta. Faz-me lembrar outros políticos que, sem qualquer maturidade e preparação, assumem cargos para os quais não foram talhados, acabando por, em momentos de maior pressão, revelar a sua fraqueza e incapacidade de gerir contrariedades. O Governo está cheio deles. 

Muitos ainda hão-de vir. A raça está difícil de acabar.

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Maio de 2024


domingo, 14 de abril de 2024

Para mais um dia inicial inteiro e limpo*

 

                                                                                

                                                                                        * Sophia de Mello Breyner

 I

 Quando começamos a ler textos em número maior que o habitual sobre os direitos e o papel da mulher na sociedade, algo começa a estar mal. “Identidade e Família”, um livro escrito a várias mãos, entre as quais as de Bagão Félix, César das Neves, Ribeiro e Castro, Paulo Otero ou Jaime Nogueira Pinto, foi recentemente apresentado por Passos Coelho na Livraria Buchholz, em Lisboa.  

Os temas abordados nestes vinte e dois ensaios acabaram por gerar a polémica esperada por quem os escreveu. Caso contrário, não os teria escrito. Quando se começa a defender a família tradicional com todos os valores que lhe estão inerentes, as novas famílias que foram sendo estruturadas ao longo das décadas mais recentes, nas quais os elementos deixaram de ser um pai, uma mãe e um(a) ou mais filho(s), sentem-se naturalmente excluídas, porque são apontadas como incapazes de proporcionar à sociedade, ou à comunidade onde se inserem, princípios e valores aparentemente tão válidos ou alegadamente tão sérios como os apregoados pelos ideólogos mais conservadores.

A mulher e o seu papel na sociedade, uma das reflexões a merecer o foco na obra e, consequentemente, nos subsequentes comentários a favor e contra ela, e centro das atenções desde o Livro do Génesis, continuará, decerto, o seu percurso. Como exemplo de luta e de vitórias e como elemento fundamental para a existência de todo este planeta onde vivemos. Como elemento da família, tradicional ou não, e cuja importância nunca deveria ter sido questionada desde os tempos mais remotos até a este mês de Abril de 2024, num país que deverá, para seu próprio bem, manter-se, todos os dias, vinte e quatro sobre vinte e quatro, em estado alucinante de alerta.

 

Com toda a polémica que causou, “Identidade e Família” veio tornar claros os desejos de alguns dos seus autores, impossíveis de conter mais, de um regresso ao passado, a uma sociedade patriarcal e masculinizada, onde a mulher voltaria a ser o que foi durante décadas: uma figura sorridente e decorativa. Então, se os defensores desse regresso se manifestaram de forma aberta e descomplexada, que não haja da nossa parte quaisquer complexos em combater, agora com o alvo à vista, ideias, conceitos e ideologias que têm em comum e por trás uma tentativa cada vez mais consciente, por parte de uma franja da sociedade, num regresso a um passado que não queremos de volta. 

 

Nada é por acaso na política e na religião. Todas as palavras e todos os actos têm um objectivo, à partida fáceis de identificar: convencer, manipular, criar ídolos. Passos Coelho foi convidado para a apresentação deste livro. Não entrou ali por acaso, não tomou a palavra porque calhou, não defendeu os textos e seus autores por bonomia de carácter, e acredito que  a tenha. Passos esteve presente para dar uma aula de política a Montenegro, com quem mantém agora uma relação de civilizada proximidade. Todos perceberam pelas suas palavras, e utilizando a obra e as suas temáticas como pretexto, que havia ali um subtexto que Ventura captou como raposa que é: “Montenegro, meu amigo, não sejas teimoso e dá um beijinho ao André.”

 

II

 

Estamos em Abril novamente. Cumprem-se 50 anos da Revolução que nos permitiu ser livres. Falar sem medo, pensar sem medo, dormir sem medo, passaram a ser acções… antes impossíveis. Este meio século sobre o grito de Salgueiro Maia e dos seus homens no Terreiro do Paço, em Lisboa, merece ser comemorado, mas sem aquele estranho sentimento que muitos já querem fazer vingar de que vamos aproveitar porque não sabemos se, para o ano, tal comemoração será possível. Claro que vai ser possível.

Sabemos que uma grande parte dos jovens do nosso país tem apenas uma ideia meio esbatida sobre a Revolução, as suas causas e consequências. Os temas que lhes interessam são de outra índole, e os pais e os professores nem sempre tornam possível essa passagem de testemunho, essencial para a sua estrutura e consciência como seres humanos e portugueses, cujos avós e bisavós viveram numa ditadura abjecta e cruel que deixou Portugal em sofrimento e “orgulhosamente só” durante cinco décadas. Afinal, somos todos herdeiros da nossa História, dos crimes cometidos em nome de Deus e da Pátria, dos feitos dos heróis, dos bons e dos maus momentos. Para podermos recusar uma ditadura, uma ditadura de qualquer tipo, há que conhecer de forma séria e aprofundada os tempos de escuridão que milhões de portugueses viveram, na esperança de um 25 de luz que lhes iluminasse o futuro.

Se tenho medo dos movimentos político-partidários, todos com a chancela da direita ou da extrema-direita? Claro que não. Quanto mais visíveis se tornam, mais facilmente serão combatidos.

Não se fala muito de opções partidárias cá em casa. Fala-se sobretudo da política que é preciso fazer vingar em nome do futuro e do progresso. Porque é preciso manter acesa a chama da Liberdade.

 


João Luís Nabo

In "O Montemorense"  Abril 2024

Distraídos crónicos...


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